sábado, 20 de fevereiro de 2010

As Crônicas de Nárnia / A viagem do Peregrino da Alvorada





"O que viram naquele momento é difícil de acreditar, mesmo nos livros; mas é muito mais difícil de acreditar quando acontece na vida real. Tudo no quadro estava em movimento. Não era como no cinema, não; as cores eram muito mais reais e vivas, como ao ar livre. A proa do navio afundava e tornava a subir nas ondas com uma grande franja de espuma. Quando uma onda ergueu o navio atrás, viu-se pela primeira vez a popoa e o convés, que desapareceram logo no bojo da onda seguinte. Neste mesmo instante, um caderno, que estava caído sobre a cama de Edmundo, começou a virar as folhas e foi levado pelo ar, batendo na parede; o cabelo de Lúcia enrolou-se em torno do rosto, como num dia de vento. Era um dia de vento, mas o vento soprava do quadro. De súbito, com o vento, vieram os barulhos... o marulhar das ondas, o bater da água de encontro ao costado do navio e, mais alto que tudo, o estrépito do vento e da água. Foi o cheiro (agreste, salgado) que convenceu Lúcia de que ela não estava sonhando."


Embalando sonhos juvenis (incluída nesta), ao ler o trecho acima, nota-se que a vida é uma grande viagem. O universo se faz em imenso mar onde suavemente se veleja. Pode ocorrer tempestade ao seguir o curso. Normal para quem deseja se aventurar por novas descobertas. A vida, tão somente eterna peregrinação.

Definitivamente, não há como escapar deste livro. Ficará de geração a geração. Livro para ser lido, relido, só, em roda sob o luar (nem precisa se deslocar para a serra ou praia). Use e abuse. Quanto mais, melhor. Mas cuidado, os efeitos colaterais logo surgirão. Não é à toa que o autor alertou:


"Uns meninos que brincavam de Nárnia
Foram ficando cada vez mais birutas..."



Quem se arrisca?
Melhor:"Quem não se arrisca, não petisca."

Lewis, C. S., 1898-1963
As crônicas de Nárnia / C. S. Lewis; ilustrações de Pauline Baynes; tradução Paulo Mendes Campos e Silêda Steuernagel; revisão da tradução Silvana Vieira. - São Paulo - Martins Fontes, 2005.

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2010

Homero / Ilíada / Odisséia


Homero/Ilíada/Odisséia...
"Triste destino Zeus grande nos deu, para nos celebrem,
nas gerações porvindouras, os cantos excelsos dos vates."

(Ilíada, VI, v. 357-8)

Para concluir algumas resenhas em tópicos anteriores, necessidade se faz de novas leituras. Dificuldade que surge não pelo desafio de interpretar um livro, expressar um ponto que embora inadequado, é apenas um ponto. Poderá ser um ponto visto facilmente, entretanto poderá alguns caros leitores ter suas dificuldades de encontrá-lo sob o mesmo olhar. Mas quem se dispõe a adentrar no mundo das letras certo que encontrará muitos pontos a serem descobertos e outros que estarão eternamente invisível aos olhos de quem o procura, mesmo sob olhar atento. Pensando nestas questões, dividir com o caro leitor que por ventura aqui passe ao acaso, que esta semana, particularmente é uma semana especial. Especial não por ter ocorrido algo assim de especial nesta data, ou que ainda venha a ocorrer. Especial por ser uma semana comum, como tantas outras, em que se acorda, trabalha, vive. Uma semana comum e especial. Por ser semana de feriado talvez nem representasse bem as demais, mas exatamente esta se fez especial. E aqui me permiti ficar diante de um livro especial. Talvez leve uma vida para interpretá-lo mas sempre há que haver o primeiro passo, melhor, a primeira página a ser lida. A coleção Homero é composta por dois livros: Ilíada e Odisséia. Ilíada, em poesia, Odisséia em romance. Apesar de me apaixonar pelo gênero poesia, sinto que o romance é sempre um bom início. Foi então que surgiu esta necessidade de leitura. Como entender de literatura sem adentrar na leitura primitiva, universal.

"Nessa paragem se encontra a cidade dos homens cimerios,
que se acham sempre envolvidos por nuvens e brumas espessas;
nunca foi dado alcançá-los os raios do sol resplendente,
nem ao subir, ao vingar ele a estrada do céu estrelado,
nem quando baixa de novo, na volta do céu para a terra.
Noite nociva se estende sem pausa por sobre esses míseros.

(Odisséia, Canto XI, 14-19).

A história de Odisséia é por certo mais comum do que se imagina. Compreender sua trajetória é compreender a de tantos homens que, peregrinos, construiram suas histórias de vida. Talvez este tópico não se conclua, pois que sem ler Odisséia, como compreender José, Helena, Luiz, Maria, João, ... Antes que comprender o outro, melhor compreender a si mesmo. Um desafio de vida (ou seria 'em vida'...).



"Conhece-te a ti mesmo"

Homero/Ilíada - Ilíada / Homero; (tradução Carlos Alberto Nunes) 2. ed. - São Paulo : Ediouro, 2009.

Imagem: Lígia Guedes - RJ- Brasil


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quinta-feira, 11 de fevereiro de 2010

V. Woolf - Contos completos



Linda, delicada, nobre. Quem tem medo de Woolf? Para os que acreditam que ler V. Woolf é adentrar no campo conflituoso da sensibilidade aguçada, fica a dica: segure na mão direita um livro de Virginia Woolf e já com a esquerda um livro de Graciliano Ramos que nós todos lemos. Abra ao acaso um parágrafo do livro da direita, leia, e a seguir, um do livro da esquerda. O efeito, testado, pode ficar um pouco estranho (os temas podem não ser o mesmo mas sempre casam, independente disto), mas no fim fica tudo muito bom, tipo goiabada com queijo. O importante é testar novos olhares. Vejamos:

"Quem foi que gritou: 'Não na casa?', perguntou mrs. Gage.
'O danado do bicho!', disse com irritação mrs. Ford, apontando para um grande papagaio cinza. 'Ele quase me deixa louca com esses gritos. Fica ali que nem estátua, montado o dia inteiro em seu poleiro, e sempre faz essa barulheira, berrando 'Não na casa', cada vez que alguém chega perto.' era uma ave muito bonita, como pôde ver mrs. Gage; mas com a plumagem em deplorável estado de abandono. 'Talvez ele esteja triste ou, quem sabe, com fome', disse ela. Mas mrs. Ford garantiu que era pura pirraça daquele papagaio de marujo que aprendera a falar lá no Oriente. Contudo, acrescentou, mr. Joseph gostava muito dele; pôs-lhe o nome de James e, segundo se dizia, conversava com o bicho como se fosse um ser racional. rs. Ford foi logo embora. E mrs. Gage, de imediato, foi buscar em seu bau um pouco de açúcar que trouxera consigo e ofereceu ao papagaio, dizendo-lhe em tom muito bondozo que não lhe faria mal, que era a irmã de seu velho dono, vinda para tomar posse da casa, e que cuidaria de tudo para torná-lo tão feliz quanto podia ser uma ave. Pegando um lampião, a seguir ela rodou pela casa, para ver que tal a propriedade que o irmão lhe deixara. Sua decepção foi amarga. Os tapetes estavam todos furados. Nas cadeiras, faltava o fundo. Ratos corriam por cima da lareira e grandes cogumelos cresciam pelo chão da cozinha. Não havia sequer um móvel que pudesse valer alguma coisa; e mrs. Gage só se sentia consoladada porque pensava nas três mil libras bem guardadas e em ordem no banco em Lewes."

(WOOLF, V., pág. 229 - contos completos - A viúva e o papagaio: uma história verídica)

"Ainda na véspera eram seis viventes, contando com o papagaio. Coitado, morrera na areia do rio, onde haviam descansado, à beira de uma poça: a fome apertara demais os retirantes e por ali não existia sinal de comida. Baleia jantara os pés, a cabeça, os osso do amigo, e não guardava lembranças disto. Agora, enquanto parava, dirigia as pupilas brilhantes aos objetos familiares, estranhava não ver sobre o baú de folha a gaiola pequena onde a ave se equilibrava mal. Fabiano também às vezes sentia falta dela, mas logo a recordação chegava. Tinha andando a procurar raízes, à toa: o resto de farinha acabara, não se ouvia um berro de rês perdida na catinga. Sinha Vitória, queimando o assento no chão, as mãos cruzadas segurando os joelhos ossudos, pensava em acontecimentos antigos que não se relacionavam: festas de casamento, vaquejadas, novenas, tudo numa confusão. Despertara-a um grito áspero, vira de perto a realidade e o papagaio, que andava furioso, com os pés apalhetados, numa atitude ridícula. Resolvera de supetão aproveitá-lo como alimento e justificar-se declarando a si mesma que ele era mudo e inútil. Não podia deixar de ser mudo. Ordinariamente a família falava pouco. E depois daquele desastre viviam todos calados, raramente soltavam palavras curtas. O louro aboiava, tangendo um gado inexistente, e latia arremedando a cachorra."
(RAMOS, Graciliano, pág. 12 - Vidas Secas)

Com sorte, encontrou a história de dois papagaios...
Os textos de V. Woolf são marcados pelo compasso da natureza, quando as estações ainda eram bem definidas. Virginia escreve com a profundidade de quem procura água em um poço fundo.

"Chegando mais perto do poço, os juncos eram afastados para poder se ver mais fundo, através dos reflexos, através das faces, através das vozes, até o fundo em si mesmo. Mas lá, por baixo do homem que estivera na Exposição; da moça que se afogara; do rapaz que vira o peixe; e da voz que exclamava ai, ai de mim! Sempre havia todavia algo mais. Sempre outra face, outra voz. Um pensamento vinha e cobria outro. Pois, embora haja momentos em que uma concha se mostra a ponto de suspender todos nós à luz do dia, com nossos pensamentos e anseios e indagações e confissões e desilusões, de algum modo a concha deixa alguma coisa escapar e uma vez mais nós escorremos de volta pela beira do poço. E uma vez mais todos seu centro é coberto pelo reflexo do cartaz que anuncia a venda da Fazenda e Moinho Romford. É por isso talvez que gostamos de nos sentar para contemplar os poços."
(WOOLF, V., pág. 325 - contos completos - O fascínio do poço)

Destaque positivo para os contos:

O misterioso caso de miss V. (pág. 31) -"No interior teria havido o açougueiro ou o carteiro ou a mulher do pastor; mas numa cidade altamente civilizada as amabilidades da vida humana se estreitam no menor espaço possível.O açougueiro larga sua carne pela área; e o carteiro enfia sua carta na caixa, sendo sabido que a mulher do pastor já atirou as missivas pastorais pela mesma brecha tão cômoda: todos eles repetem que não têm tempo a perder. Assim, ainda que não se coma a carne, que as cartas fiquem por ler e que os comentários pastorais sejam desobedecidos, ninguém se torna mais sensato; até que chega um dia em que esses funcionários tacitamente concluem que o número 16 ou 23 não precisa mais de atendimento. Em suas rotinas eles então passam ao largo, e a pobre miss J. ou miss V. fica fora dessa malha fechada da vida humana; e é deixada por todos e para sempre ao largo."
O conta relata a condição humana, de andar em meio a muitos, em um mundo socialmente preenchido, sem entretanto a tentativa de aprofundar o outro. Fala de distância humana, solidão. Já naquele tempo vivenciado pela autora, a percepção dos relacionamentos, desconfianças, onde as facilidades do viver vão congelando as percepções humanas. Um ponto interessante sobre percepção é focado no conto alertando que a percepção, o sentir sem ver, intuir o outro é um processo mais natural do que possamos imaginar.

No pomar (pág. 206) - "Miranda dormia no pomar, deitada numa espreguiçadeira sob o pé de maçã. Seu livro tinha caído na grama e seu dedo ainda parecia apontar para a frase 'Ce pays est vraiment un des coins du monde ou le rire des filles éclate le mieux...', como se justamente aí ela houvesse começado a dormir. As opalas em seu dedo camiavam de cor ao faiscar, ora em verde, ora em rosa, ora ainda em laranja, à medida que o sol vinha cobri-las, filtrado pelas macieiras. Depois, quando a brisa soprou, como uma flor presa na haste seu vestido roxo ondulou; dobrou-se a grama; e a borboleta branca, bem por cima do seu rosto, veio esboaçando a esmo."
Um conto delicioso. Pudéssemos nos permitir a sutileza de nos deixar ficar...

Um conto que não agradou, que ficará como futura releitura:

O lugar da aguada (pág. 427) - "Porém à noite o aspecto da cidade é de todo etéreo. Há um brilho branco no horizonte. Há brincos de argolas e diademas nas ruas. A cidade submerge. E nas mimosas lanternas decorativas somente sobressai seu esqueleto."

Leitura para a vida. Doi um pouco, mas faz parte do viver. É isto!

-> Primeiros contos
[Phyllis e Rosamond], O mistérioso caso de miss V., [O diário de mistress Joan Martyn], [Um diálogo no monte Pentélico], Memórias de uma romancista

-> 1917 - 1921
A marca na parede, Kew Gardens, Noite de festa, Objetos sólidos, Condolência, Um romance não escrito, Casa assombrada, Uma sociedade, Segunda ou terça, O quarteto de cordas, Azul e verde

-> 1923 - 1925
Uma escola de mulheres vista de fora, No pomar, Mrs. Dalloway em Bond Street, A cortina da babá Lugton, A viúva e o papagaio: uma história verídica, O vestido novo,
Felicidade, Antepassados, A apresentação, Juntos e à parte, O homem que amava sua espécie, Uma simples melodia, Uma recapitulação

-> 1926 - 1941
Momentos de ser: "pinos de telha não têm pontas", A dama no espelho: reflexo e reflexão, , O fascínio do poço, Três quadros, Cenas da vida de um oficial da Marinha britânica, Miss Pryme, Ode escrita parcialmente em prosa, ao ver o nome de Cutbush na
fachada de um açougue em PENTONVILLE, [Retratos], Tio Vanya, A duquesa e o joalheiro, A caçada, Lappin e Lapinova, O holofote, Cigana, a vira-lata, O legado,
O símbolo, O lugar da aguada

-> Notas
-> Sugestões de leitura

Woolf, Virginia [1882-1941]
Contos completos; Virginia Woolf
Título original: The complete shorter fiction of Virginia Woolf
Tradução: Leonardo Fróes
Fixação de texto e notas: Susan Dick
São Paulo: Cosac Naify, 2005
472 pp. 2 ils.

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