quinta-feira, 11 de fevereiro de 2010

V. Woolf - Contos completos



Linda, delicada, nobre. Quem tem medo de Woolf? Para os que acreditam que ler V. Woolf é adentrar no campo conflituoso da sensibilidade aguçada, fica a dica: segure na mão direita um livro de Virginia Woolf e já com a esquerda um livro de Graciliano Ramos que nós todos lemos. Abra ao acaso um parágrafo do livro da direita, leia, e a seguir, um do livro da esquerda. O efeito, testado, pode ficar um pouco estranho (os temas podem não ser o mesmo mas sempre casam, independente disto), mas no fim fica tudo muito bom, tipo goiabada com queijo. O importante é testar novos olhares. Vejamos:

"Quem foi que gritou: 'Não na casa?', perguntou mrs. Gage.
'O danado do bicho!', disse com irritação mrs. Ford, apontando para um grande papagaio cinza. 'Ele quase me deixa louca com esses gritos. Fica ali que nem estátua, montado o dia inteiro em seu poleiro, e sempre faz essa barulheira, berrando 'Não na casa', cada vez que alguém chega perto.' era uma ave muito bonita, como pôde ver mrs. Gage; mas com a plumagem em deplorável estado de abandono. 'Talvez ele esteja triste ou, quem sabe, com fome', disse ela. Mas mrs. Ford garantiu que era pura pirraça daquele papagaio de marujo que aprendera a falar lá no Oriente. Contudo, acrescentou, mr. Joseph gostava muito dele; pôs-lhe o nome de James e, segundo se dizia, conversava com o bicho como se fosse um ser racional. rs. Ford foi logo embora. E mrs. Gage, de imediato, foi buscar em seu bau um pouco de açúcar que trouxera consigo e ofereceu ao papagaio, dizendo-lhe em tom muito bondozo que não lhe faria mal, que era a irmã de seu velho dono, vinda para tomar posse da casa, e que cuidaria de tudo para torná-lo tão feliz quanto podia ser uma ave. Pegando um lampião, a seguir ela rodou pela casa, para ver que tal a propriedade que o irmão lhe deixara. Sua decepção foi amarga. Os tapetes estavam todos furados. Nas cadeiras, faltava o fundo. Ratos corriam por cima da lareira e grandes cogumelos cresciam pelo chão da cozinha. Não havia sequer um móvel que pudesse valer alguma coisa; e mrs. Gage só se sentia consoladada porque pensava nas três mil libras bem guardadas e em ordem no banco em Lewes."

(WOOLF, V., pág. 229 - contos completos - A viúva e o papagaio: uma história verídica)

"Ainda na véspera eram seis viventes, contando com o papagaio. Coitado, morrera na areia do rio, onde haviam descansado, à beira de uma poça: a fome apertara demais os retirantes e por ali não existia sinal de comida. Baleia jantara os pés, a cabeça, os osso do amigo, e não guardava lembranças disto. Agora, enquanto parava, dirigia as pupilas brilhantes aos objetos familiares, estranhava não ver sobre o baú de folha a gaiola pequena onde a ave se equilibrava mal. Fabiano também às vezes sentia falta dela, mas logo a recordação chegava. Tinha andando a procurar raízes, à toa: o resto de farinha acabara, não se ouvia um berro de rês perdida na catinga. Sinha Vitória, queimando o assento no chão, as mãos cruzadas segurando os joelhos ossudos, pensava em acontecimentos antigos que não se relacionavam: festas de casamento, vaquejadas, novenas, tudo numa confusão. Despertara-a um grito áspero, vira de perto a realidade e o papagaio, que andava furioso, com os pés apalhetados, numa atitude ridícula. Resolvera de supetão aproveitá-lo como alimento e justificar-se declarando a si mesma que ele era mudo e inútil. Não podia deixar de ser mudo. Ordinariamente a família falava pouco. E depois daquele desastre viviam todos calados, raramente soltavam palavras curtas. O louro aboiava, tangendo um gado inexistente, e latia arremedando a cachorra."
(RAMOS, Graciliano, pág. 12 - Vidas Secas)

Com sorte, encontrou a história de dois papagaios...
Os textos de V. Woolf são marcados pelo compasso da natureza, quando as estações ainda eram bem definidas. Virginia escreve com a profundidade de quem procura água em um poço fundo.

"Chegando mais perto do poço, os juncos eram afastados para poder se ver mais fundo, através dos reflexos, através das faces, através das vozes, até o fundo em si mesmo. Mas lá, por baixo do homem que estivera na Exposição; da moça que se afogara; do rapaz que vira o peixe; e da voz que exclamava ai, ai de mim! Sempre havia todavia algo mais. Sempre outra face, outra voz. Um pensamento vinha e cobria outro. Pois, embora haja momentos em que uma concha se mostra a ponto de suspender todos nós à luz do dia, com nossos pensamentos e anseios e indagações e confissões e desilusões, de algum modo a concha deixa alguma coisa escapar e uma vez mais nós escorremos de volta pela beira do poço. E uma vez mais todos seu centro é coberto pelo reflexo do cartaz que anuncia a venda da Fazenda e Moinho Romford. É por isso talvez que gostamos de nos sentar para contemplar os poços."
(WOOLF, V., pág. 325 - contos completos - O fascínio do poço)

Destaque positivo para os contos:

O misterioso caso de miss V. (pág. 31) -"No interior teria havido o açougueiro ou o carteiro ou a mulher do pastor; mas numa cidade altamente civilizada as amabilidades da vida humana se estreitam no menor espaço possível.O açougueiro larga sua carne pela área; e o carteiro enfia sua carta na caixa, sendo sabido que a mulher do pastor já atirou as missivas pastorais pela mesma brecha tão cômoda: todos eles repetem que não têm tempo a perder. Assim, ainda que não se coma a carne, que as cartas fiquem por ler e que os comentários pastorais sejam desobedecidos, ninguém se torna mais sensato; até que chega um dia em que esses funcionários tacitamente concluem que o número 16 ou 23 não precisa mais de atendimento. Em suas rotinas eles então passam ao largo, e a pobre miss J. ou miss V. fica fora dessa malha fechada da vida humana; e é deixada por todos e para sempre ao largo."
O conta relata a condição humana, de andar em meio a muitos, em um mundo socialmente preenchido, sem entretanto a tentativa de aprofundar o outro. Fala de distância humana, solidão. Já naquele tempo vivenciado pela autora, a percepção dos relacionamentos, desconfianças, onde as facilidades do viver vão congelando as percepções humanas. Um ponto interessante sobre percepção é focado no conto alertando que a percepção, o sentir sem ver, intuir o outro é um processo mais natural do que possamos imaginar.

No pomar (pág. 206) - "Miranda dormia no pomar, deitada numa espreguiçadeira sob o pé de maçã. Seu livro tinha caído na grama e seu dedo ainda parecia apontar para a frase 'Ce pays est vraiment un des coins du monde ou le rire des filles éclate le mieux...', como se justamente aí ela houvesse começado a dormir. As opalas em seu dedo camiavam de cor ao faiscar, ora em verde, ora em rosa, ora ainda em laranja, à medida que o sol vinha cobri-las, filtrado pelas macieiras. Depois, quando a brisa soprou, como uma flor presa na haste seu vestido roxo ondulou; dobrou-se a grama; e a borboleta branca, bem por cima do seu rosto, veio esboaçando a esmo."
Um conto delicioso. Pudéssemos nos permitir a sutileza de nos deixar ficar...

Um conto que não agradou, que ficará como futura releitura:

O lugar da aguada (pág. 427) - "Porém à noite o aspecto da cidade é de todo etéreo. Há um brilho branco no horizonte. Há brincos de argolas e diademas nas ruas. A cidade submerge. E nas mimosas lanternas decorativas somente sobressai seu esqueleto."

Leitura para a vida. Doi um pouco, mas faz parte do viver. É isto!

-> Primeiros contos
[Phyllis e Rosamond], O mistérioso caso de miss V., [O diário de mistress Joan Martyn], [Um diálogo no monte Pentélico], Memórias de uma romancista

-> 1917 - 1921
A marca na parede, Kew Gardens, Noite de festa, Objetos sólidos, Condolência, Um romance não escrito, Casa assombrada, Uma sociedade, Segunda ou terça, O quarteto de cordas, Azul e verde

-> 1923 - 1925
Uma escola de mulheres vista de fora, No pomar, Mrs. Dalloway em Bond Street, A cortina da babá Lugton, A viúva e o papagaio: uma história verídica, O vestido novo,
Felicidade, Antepassados, A apresentação, Juntos e à parte, O homem que amava sua espécie, Uma simples melodia, Uma recapitulação

-> 1926 - 1941
Momentos de ser: "pinos de telha não têm pontas", A dama no espelho: reflexo e reflexão, , O fascínio do poço, Três quadros, Cenas da vida de um oficial da Marinha britânica, Miss Pryme, Ode escrita parcialmente em prosa, ao ver o nome de Cutbush na
fachada de um açougue em PENTONVILLE, [Retratos], Tio Vanya, A duquesa e o joalheiro, A caçada, Lappin e Lapinova, O holofote, Cigana, a vira-lata, O legado,
O símbolo, O lugar da aguada

-> Notas
-> Sugestões de leitura

Woolf, Virginia [1882-1941]
Contos completos; Virginia Woolf
Título original: The complete shorter fiction of Virginia Woolf
Tradução: Leonardo Fróes
Fixação de texto e notas: Susan Dick
São Paulo: Cosac Naify, 2005
472 pp. 2 ils.

Você também poderá gostar de:

8 comentários:

  1. Ôpa! Uma opção e tanto para o carnaval.
    Gosto muito de V. Woolf, por sua obra e pela sua vida, mas nunca tive a coragem de escrever uma resenha.
    Estarei aguardando a sua.
    Bjs

    ResponderExcluir
  2. Muito boa escolha! Boa leitura e um excelente feriado de carnaval.

    ResponderExcluir
  3. Barros,
    Vixi! Coragem prá falar de gente que nem a gente...É bom demais!
    Beijos!

    ResponderExcluir
  4. Kovacs,
    Você também poderá gostar de:
    Clarice Lispector, laços de família...
    Só lendo!

    ResponderExcluir
  5. O livro de Entrevistas da Clarice tá aqui na minha cabeceira...Encontrei por acaso, na Timbre, quando fui trocar um livro...

    ResponderExcluir
  6. Ana R.,
    Sempre lembra o 'Timbre'.

    "Pelas brenhas do século XIX,
    meu trisavô,
    avô do meu avô pai do meu pai,
    encourado,
    com poucas letras
    e talvez sem nunca ter visto o mar
    adjutorava na construção deste País,
    sem saber, sem suspeitar
    quão cobiçosos olhos
    espichavam prá cá.
    Agora, tanto tempo depois,
    tocou-me a mim lhe fazer este verso:

    Quem no chão desta caatinga
    devagar o ouvido encosta,
    escuta fatos de outrora
    sob um sol que tudo tosta,
    e, lá bem longe, um lamento,
    que vai boiando ao vento
    Manoel Fidélis da Costa."


    Boa quarta-feira...

    ResponderExcluir
  7. Olá Lígia!

    Acho que preciso vir aqui com mais frequência. Pois, aumenta a necessidade que sinto de ler mais depois que leio os seus artigos. Lemos tantas coisas que, embora não justifique, diminuimos o tempo com a literatura propriamente dita.

    Um abraço

    ResponderExcluir
  8. Paulo Athayde,

    Tem razão. Boa reflexão.
    Tenho sentido que o espaço está esvaziado, necessitando adentrar mais em literatura.
    Agradeço a dica e essencialmente a presença.

    ResponderExcluir

LinkWithin

Related Posts with Thumbnails